domingo, 2 de julho de 2017

Diálogo domingueiro sobre ser palhaço, do Y, querer ser doutor, e outras bagatelas

Allan (1): Falei recentemente com a Júlia Sargento (2), pedi dicas de como dar oficina. Ela me falou algo intrigante: "tem que, primeiro de tudo, ver a motivação das pessoas para entrar no palhaço. Porque visitar crianças hospitalizadas para dar alguma alegria e bálsamo pra elas, várias atividades podem fazer isso. Mas, será que o palhaço é o caminho DESSA PESSOA SINGULAR que está querendo fazer isso?"                        

Mayko (3): MOR-TO                        

Allan: Fiquei pensando quantos não ficam deslocados no Y porque não era o caminho dela [dessa pessoa singular].
                        
Mayko: Faz muito sentido.  
                      
Allan: Vou dividir contigo o e-mail. Chega já.                        

Mayko: Mas, mano, foda isso. Eu sou muito bolado com quem quer entrar no Y porque acha que é projeto social, caridade, alegrar as crianças. A gente nunca se propôs a ser só isso, mesmo assim várias pessoas acham que é isso que a gente é. Sempre sinto muito isso lendo os materiais da seleção. Cheio de nego mandando coisa pra gente como se fosse participar de ONG ou coisa de igreja.    

Allan: Sim. Pelas palavras da Júlia, e nesse momento fico pensando mais sobre isso, o palhaço de fato deveria vir primeiro. E não a caridade, a igreja, a ONG. Não que não seja importante a caridade, a igreja, a ONG, mas é que se não, não tem palhaço. Daí algumas pessoas saírem logo. Vêem que não era o que sonhavam.                        

Mayko: Eu achei que tu ia discordar de mim, tô feliz!                        

Allan: Tem gente, como aquela nossa amiga querida, que não sai, mas também não fica. São pessoas que captam a grandiosidade da coisa mas sentem no fundo que não é o caminho delas. Mas, se amam o fim, são muito trôpegas no meio. Pra pessoa se encontrar mesmo no Y tem que sentir sede de ser palhaço. A criança pode até ficar em segundo plano, mas é um plano. O final dessa história é o encontro da sede do palhaço com a fome do sorriso da criança sofrida. 
                       
Mayko: Da minha ótica falta a variável doutor na tua equação. Mas concordo com tudo, fora isso.
                        
Allan: Eu me tornei imortalmente Y, porque o palhaço sempre foi importante pra mim. E a criança, idem. A síntese tava meio feita, ainda imatura, mas encaminhada. 
                       
Mayko: Mas é muito difícil não perder o palhaço no caminho, ó, Allan. A faculdade meio que engole muito. Esse semestre [o último antes dos estágios finais] eu visitei 4 vezes, só, eu acho. 
                       
Allan: Na minha ainda pobre visão, acredito que o sentimento de querer amenizar o sofrimento é o que nos dirige para o doutor. Antes de exercer a profissão de fato, esse desejo tem que ser centuplicado. 
                       
Mayko: Hum... eu discordo. Acho que incluir o doutor na equação como variável, e não como resultado, é importante.   
                     
Allan: Cara, é que acho que não se pode incluir uma variável que é uma incógnita em uma equação que queremos que resulte em algo. O que diabos é ser doutor? Fui descobrir isso ao final do meu primeiro ano de formado, e ainda de forma tosca. 
                       
Mayko: Sobre por que diabos a variável doutor tem que entrar na equação:


  1. Pra que a relação que você tenha com a criança não seja de mero palhaço que veio te fazer sorrir. Mas pra que seja, também, de cuidado. E acho que o doutor acrescenta isso de forma mais óbvia. Muda a relação.
  2. Pra mudar a relação do palhaço com você mesmo. Percebi em um dos meninos do Y, esses dias, que uma crise comum ao Y é a de identidade. O palhaço não é a pessoa. A pessoa não é o médico. E no fim são três pessoas diferentes tentando existir juntas. Unificar as três imagens é parte do processo, pra mim. Eu sou Mayko, Caju e doutor. E sou os três ao mesmo tempo, sempre, mesmo quando sou mais um do que o outro. Destruir as barreiras que eu construí entre essas três imagens foi importante pra consolidar os benefícios do Y pra mim.
  3. Pra desmistificar, que é o óbvio.                        
- Sobre ser essa variável uma incógnita:
  1. Não acho que é tão incógnita, pra muita gente. 
  2. A gente experimenta o "ser doutor" de várias formas bizarras, na universidade. Aulas práticas, argüições, perguntas de familiares. Por que a visita não pode ser uma forma de experimentar o "ser doutor" sob uma ótica diferente? Sem tanta pressão, sem tanto stress... com sorriso, pra variar? Fazer sorrir não é cuidado? Conversar não é cuidado? Ouvir não é cuidado? Por que seriam privilégios só do palhaço? É bom que a gente experimente o Y como doutores, também. Ainda que a gente não saiba o que é isso. Porque é pra isso que o Y existe, não é? Pra formar doutores mais humanos. Não dá pra achar que isso um dia vai vir como resultado de equação. Doutor é construção, não um fenômeno que vai acontecer, eventualmente. O Y também é uma forma de experimentar ser doutor. E de construir essa ideia. Construir o ideal de doutor que eu quero ser. Por isso acho que não dá pra excluir. Não faz sentido ser só palhaço pra mim. É Doutor Caju. Sempre foi Doutor Caju. Mesmo quando eu queria desistir da medicina. Mesmo agora que eu cada vez mais percebo que não sei ser médico. Tô triste que esse papo tá só entre nós dois. Renderia tanto!                        

Allan: Acho que é os dois: Construção e Acontecimento. Não creio que esse diálogo vá dar em algum lugar, porque defendemos duas faces da verdade. O interessante da sua proposta é o que qualquer sistema de ensino médico preconiza: formar o ideal do médico para quando houver o choque da realidade ver se surge uma síntese mais sã. O problema também é da minha história. Sou extremamente ingrato com a universidade, por tudo que ela destruiu em mim. Ainda não elaborei direito a noite que ela representou. Por isso tendo a dizer: o doutor que temos em mente na faculdade é uma incógnita (querendo dizer: é um nada). Vou copiar isso aqui, trabalhar e transformar numa postagem.  
                      
Mayko: A faculdade não foi doce pra mim, também (risos). Melhorou faz pouco tempo, e continua ruim. Mas, não acho que não é desse ponto que a gente tem que partir, apesar de historicamente o Y ser um ninho de desajustados. Eu gosto de experimentar ser médico, mesmo sendo ignorante. Por isso que gosto de ir pro estágio. Por isso que gosto de aula prática. Por isso que gosto de ir pro hospital. Sabe porque eu defendo muito isso? Porque a visão de que o médico vai acontecer quando a gente se formar parte do ponto que antes da faculdade a gente tinha uma vocação. A faculdade destruiu essa vocação. E aí vamos nos reencontrar com ela quando nos formarmos. Sendo que o ideal é a vocação não morrer na faculdade. Tu nunca achou que tinha vocação pra médico. Talvez estivesse aí o erro. 
                        
Allan: Parece então que sua vontade de ser doutor é infinitamente mais suficiente para dar força a algum conceito do que foi a minha. Olhando para trás fico me perguntando o que foi aquilo. Lembro-me das pessoas que amei e amigos, e quase nada da medicina. Eu fiz dessa estrofe da música "Carrossel do Destino" a síntese da minha faculdade ao final de tudo:  


   Deixo os versos que escrevi 
As cantigas que cantei
5 ou 6 coisas que eu sei
E 1 milhão que eu esqueci

Deixo este mundo daqui
Selva com lei de cassino
Pra renascer num menino
      Num país além do mar!      
                  
Mayko: Morto, que bonito, mah! Me contempla, um pouco (risos). Mas, eu voltei a ver vontade de ser médico em mim. Inclusive já te disse que tu foi importante nisso. Desde de lá do quinto semestre. E agora de novo. Mas, a faculdade ainda é estranha e ruim, mesmo. Não deixar a vocação morrer é importante justamente por isso. 
                       
Allan: Eu tinha uma vontade de ser o que a faculdade não me mostrou. Na minha cabeça tinha o Ser, e na faculdade, veio o Não-Ser.      
                  
Mayko: E quando digo vocação é mais "vontade". Porque vocação sugere "capacidade de ser aquilo". E falar sobre ser capaz é pesado (risos). 

Allan: O pior é que, ao meu redor, as pessoas pareciam bem mais encontradas que eu. Fora raros habitantes que encontrei vagando na minha ilha. Minha primeira namorada na faculdade era quase igual a mim. Estava ilhado por pessoas que conseguiam nadar na correnteza. Eu me entregava aos vórtices. Experimentava a água salgada enchendo os pulmões. Salgava os olhos, e chorei uma vez - uma vez.  
                      
Mayko: Risos. Meus dois melhores amigos - praticamente únicos - na sala nova desde que eu voltei do Ciência Sem Fronteiras (CsF) são dois gênios muito bem resolvidos. E que, inclusive, tem, de vez em quando, discurso de que seu desempenho nas provas reflete o profissional que você vai ser. Imagina como é difícil ficar com eles dois 😅.
              
Allan: Reflete de fato. Menos em termos de excelência do que de caminhos. As provas da faculdade são o salvo-conduto para aquela medicina que eles definem, para aquele tipo de médico que eles definem. Se a medicina é uma construção histórica das respostas que nós humanos demos de dar para o sofrimento humano, a experiência de ser médico é simplesmente infinita. Veja o espectro da luz, vemos as cores que os olhos podem ver e ponto.             
           
Mayko: Eu não acho que reflete tanto. Mas sei lá, né? Ainda assim é ruim ouvir isso dos seus amigos. Até porque às vezes eles mal estudam e ainda assim tiram nota maior que eu (risos). Mas, essa conversa desandou, falar de nota não é interessante.
                        
Allan: Então a postagem acaba aqui, senão fica muito grande.


(1) Allan Denizard Mota Marinho: Médico, orientador artístico-filosófico do Projeto Y. Um dos fundadores do projeto. Ainda dando pitaco direto nos rumos dele.
(2) Júlia Peredo Sarmento: Atriz palhaça maravilhosa que concedeu uma oficina ao Projeto Y que mexeu com muitas certezas e confortos de vários integrantes. Em virtude disso ficou sendo carinhosamente chamada de Júlia Sargento por alguns deles (os que mais se sentiram mexidos).
(3) Mayko Vasconcelos: Estudante de medicina, quase entrando na reta final. Já é considerado um velho no projeto Y. No momento que tem esse diálogo, talvez seja, de fato, o mais caduco de lá. Esse diálogo, portanto, foi um velho falando com um muito ancião.

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