sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Carta para Ana

Ana,

Difícil selecionar as lembranças que possam vir a melhorar a sua alma para a primeira vez que vai colocar o nariz e tentar ser palhaça para crianças.

Acho que realmente o melhor é falar de lembranças.

Minha primeira visita foi intensa e conturbada. Eu via o nosso primeiro professor se vestindo e se maquiando. Ficava pensando o quanto ele se paramentava bem. Eu: roupas pretas (nulas) e maquiagem copiada (suja).

Muitas pessoas inauguraram o Y. Aqueles metidos a palhaços, todos bagunçando os corredores do grande hospital pediátrico... bom que dava pra se esconder quando não se sabia o que fazer. Várias vezes me surpreendi imitando o mestre, indo para onde ele ia, completando o que ele começava. Todos os olhares e orelhas se multiplicavam ao redor como censores das minhas besteiras (fracassos?).

Talvez a expectativa seja imensa porque proporcional a preparação. Lá sabia eu que o palhaço levava tanta coisa consigo, tanto significado, tanta intensidade. Tão simples parecia quando o Patch Adams passava a imagem de apenas um belo atrevido, colocando um nariz e ousando dizer bom dia inusitadamente pela rua, caindo de cima de uma árvore. Tem gente que passa a faculdade inteira para adentrar no universo do palhaço. A faculdade de artes cênicas! E somos meros estudantes das doenças. Veja que ousadia e prepotência.

Acho que por causa desse ridículo (querermos ser em 40 horas o que pessoas levam uma vida para aprender) o melhor caminho era de dois ou três amigos meus que decidiram ser apenas um Patch (cujo significado, lembra?, é ser um curativo para as pessoas) e se permitir fazer apenas o que sem nariz nunca fariam. Sentir essa vida de permissão e traquinagem, gentileza e alegria que o senso comum entende dever ser o doutor palhaço. Assim, eles eram menos preocupados e curtiam mais.

É tipo quando a gente se forma em medicina. Morto de medo que qualquer paracetamol a mais vá fulminar com o fígado de um. Morrendo de vergonha de estar abrindo um livro na frente do paciente para tirar dúvida sobre o problema que ele compartilha. E, no entanto, pelo menos no contexto da atenção primária, a pessoa ficava feliz só por você estar ouvindo, atento, acolhedor, preocupado, se importando - presente.

Recentemente, nas minhas terapias, eu descobri essa coisa tão importante sobre a grandeza de meu pai. Depois que cresci, ele deixou de ser para mim aquele grande herói, conseguia derrubá-lo na queda de braço, corria mais veloz que ele, ultrapassei seus conhecimentos matemáticos e, mesmo, os das noções das cadeiras básicas de medicina. Por que, então, que depois de sua morte eu fui sentindo uma falta abissal dele? Seus gestos mais bobos nascendo em meu corpo. Suas piadas mais tolas, em minha boca. Sua forma de pensar mais cotidiana, em meus atos. Porque, entendi, ele esteve sempre presente. Desde as madrugadas em que trocava as fraldas, até os banhos debaixo do chuveiro para baixar a febre, até a sua pequena pança me servindo de travesseiro, seus métodos infalíveis de me fazer decorar os capítulos de história, seu rádio da madrugada, seus jornais de todo domingo, as figurinhas que trazia das bancas para completar meus álbuns, sua forma de dormir com o travesseiro ou o livro no rosto, até o nosso último café que ele sempre fazia amargo. 

Claro, Ana, que você está longe de ser alguém tão importante assim na vida de qualquer criança. Não há tempo para se formar tanto passado. Mas, eu te aconselho só isso, depois de todas as orientações que passei nas oficinas: se não há tempo suficiente para se construir um grande passado entre vocês, esteja, pelo menos, presente. 

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